Maria Claudia Paixão Etchepare, Diretora Social da Casa Basca do
RGS, é professora de inglês há mais de 30 anos. Casada com o
inseparável Luis Antonio Senger, o L.A., e mãe de Carolina Etchepare Guindani,
Claudia, como é chamada, demonstra seu amor à cultura e às letras,
não somente promovendo encontros culturais em idioma saxão no Clube de Inglês mantido para alunos executivos, como também participando de
oficinas literárias( já teve três contos publicados no livro Contos
Contemporâneos da Oficina de Criação Literária de Alcy Cheuiche). E afinal, o
amor à arte e à literatura não emerge somente do lado basco (anoto que , a primeira obra de Literatura Basca de que se tem notícia foi escrito por um
Etxepare- Bernard Etxepare- , em 1545, sob o título Linguae Vasconum
Primitiae), mas sendo sobrinha do renomado Paixão Cortes, a cultura
sempre teve lugar de destaque em sua formação e de sua família. Depois de
alguns anos de afastamento, Claudia retornou recentemente à amada terra natal,
Santana do Livramento, decidindo expressar suas emoções em uma
linda crônica, produto de muito talento e sensibilidade. Para nosso deleite,
Claudia Etchepare permitiu que sua doce produção literária fosse compartilhada
com os leitores do blog, especialmente com seus conterrâneos da Fronteira da
Paz. Agradeço à nossa querida Diretora Social e amiga por este presente e
parabenizo aos santanenses por mais um talento fronteiriço.
Ana Luiza Panyagua Etchalus
Presidente
Casa Basca do Rio Grande do Sul
Crônica da Frontera
por Claudia Paixão Etchepare
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Cláudia Etchepare |
Ah, fronteiras! Dizem que são linhas divisórias onde acaba o conhecido e o
desconhecido se apresenta, a ser desbravado. Há as imaginárias, as emocionais e
as físicas. Tenho especial predileção pelas fronteiras geográficas, como rios,
montanhas e desertos. Elas nos dão a condição ínfima do humano. Fronteira é
terra sem dono, zona de desconforto. Ao cruzar a fronteira abrimos mão de nossa
soberania e corremos risco de ter nossas crenças subvertidas e nossas verdades
postas à prova.
Partimos eu, meu marido, minha filha e minha tia-anjo-mãe prontos para
desbravar la más hermana de todas las
fronteras del mundo. Era um dia iluminado de outono. Três diferentes
gerações, nascidas nas décadas de 20, 50 e 80, compartilhavam o espaço do carro
e a promessa de bons momentos. Santana do Livramento, onde nasci e vivi até os
meus seis anos de idade, era o nosso destino. A integrante nonagenária da troupe garantia o testemunho das
histórias de quem viveu o dia a dia da terra.
Um par de mudas de roupa e itens básicos jogados apressadamente nas malas
englobavam todas as nossas posses naquele momento. A totalidade de nossa rede
social reduzia-se a três companheiros de viagem e a estrada, a única opção de
caminho. Como diz o vocalista da banda Eagles, this could be heaven, this could be hell...
Na estrada, do lado direito,
coxilhas suaves tingidas de diferentes matizes de verde e extensões de rara
amplitude para os olhos citadinos. Vacas, mais vacas. Do lado esquerdo, a mesma
coisa. Olha aquela vaca ali, parece ser prima daquela que vimos mais atrás - diz
o meu espirituoso marido, e nos faz
explodir em risada, tomados pelo relaxamento compulsório que a estrada impõe. O
aroma adstringente das bergamotas, que saboreávamos para ajudar a passar o
tempo, disfarçava o cheiro de zurrilho em
certos trechos da estrada. Lá fora, cercas sobem e descem acompanhando
obedientemente as linhas do relevo. Capões, feito tufos rebeldes, salpicam o
campo enquanto retalhos simétricos de reflorestamento de acácias beiram a
estrada. Silos metálicos cortam a mesmice bucólica do pampa. Imponentes
representantes da economia do estado. Quando eu viajava com frequência à Punta
del Este pintei muitas aquarelas, impactada pelas imagens do percurso. E lá
estavam as minhas aquarelas sendo reproduzidas em série, ao longo da estrada,
como o quadro a quadro dos rolos de filmes da era pré-digital. Casinhas de
joão-de-barro empoleiradas nos postes. Passarinhos pousados em linha nos fios
da rede elétrica. O amarelo ouro das plantações. Verdadeiras cópias de minhas
obras. Será que isto não seria um autoelogio?
Santana do Livramento tem uma fronteira sui
generis que vive há muito inserida no conceito moderno de comunidades
colaborativas e interativas. É uma fronteira de mescla, de soma. Lá, o simples
cruzar de uma avenida determina a mudança de nacionalidade da terra Brasil para
a terra Uruguai. E nada muda.Tudo se funde.
Chegamos em Santana do Livramento
exalando pampa pelos poros. Os fatos que se sucederam nos dois dias e duas
noites que passamos na minha terra natal, os tenho registrados como flashes
fotográficos. Visitam-me à revelia. Inquietam-me com o suave bater de asas de
borboletas em minhas entranhas.
Parrilla. Alfajores. Comfort food para alguém criado com hábitos fronteiriços. Nosso charmoso
hotel boutique em Livramento, instalado em um prédio histórico restaurado.
Acolheu originalmente uma prisão, explica a esclarecida dona enquanto nos
recebe para um simpático brinde de boas vindas. Mais parrilla. Cerveza Norteña.
Algumas comprinhas no free shop da
Avenida Sarandi em Rivera. Dulce de
leche. Milhojas fresquinhas na confitería.
Um encontro enriquecedor com uma mulher culta, bela e forte, cuja avó era irmã
da minha avó. Ela vive em uma casa suntuosa
estilo neo-clássico alheia ao caos do comércio e da arquitetura desfigurada das
ruas que sobem e descem o centro de Livramento. Conversa caudalosa e calorosa, regada a vinho
local. Identificação mágica. Eskerrik asko, meu
conterrâneo e basco-descendente, assim como eu, por este contato precioso. Mais compras: vinho tannat para compor a adega de inverno e galletas. Fazer uma fezinha, tentar la suerte no cassino. Negro el ocho! No vá más! Minha filha
estava com a mão encantada. Emoção. A casa onde nasci. Pelas mãos de Dona Luizinha,
a parteira. Cinza chumbo, porta muito alta trabalhada com entalhes em madeira e
um robusto trinco de bronze. Arquitetura clássica da região. Frações de
memórias repicam ao som dos meus passos pelas ruas da cidade. A cidade ganha
uma nova dimensão à luz de meu amadurecer. O olhar do homem de sobrancelhas
grossas e pele cor de oliva lembra os ares do meu pai. Ao cruzar a avenida, a imagem
da mulher de traços nobres e trajar elegante me enche de saudade da beleza de
minha mãe. Um brinde para celebrar o sucesso de nossa excursão e incursão ao
passado. Missão cumprida, com tudo que tínhamos direito. Matambre delicioso e
incrivelmente macio. Chajá. Un té, por
favor, para ajudar a digestão. Pena que não pudemos visitar o Clube
Campestre porque chovia.
Os dois países invadem- se carinhosamente. O português e o espanhol são
intercambiados com naturalidade ou se mesclam deliciosamente. O fluido trânsito
social e comercial entre eles incorpora grandezas que vão além da boa
vizinhança. Os traços físicos, a maneira de se vestir, o hábito de tomar mate e
o gosto pelo assado fundem-se em um
só homem, o gaúcho fronteiriço ou gaucho.
Um verdadeiro precursor do conceito atual do homem global. Ok, Ok. Talvez esteja me deixando levar pela emoção.
Voltamos pela mesma estrada. Do lado esquerdo, ganado Angus, Hereford, Holandês, verde em profusão e em diferentes
tons, e do lado direito... Bem, eu já contei. Só que, no percurso de volta, a imensidão da
paisagem não mais se exibia distante, pelo lado de fora. Estava dentro de mim.
Ah, fronteiras!